sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Filosofia Contada


Sentou-se à frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe que o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e desaparece antes que se possa o nomear. Tinha pressa sem saber exatamente de quê, pois preso a seu próprio HD interno auto-comandado e sem limite de memória ainda tentava, com muita dificuldade, organizar, ao menos a princípio, o tema para o qual pretendia dispor de algumas horas a fim de  dar-lhe materialidade, ou vida, no momento mesmo em que iria romper-lhe a organicidade pra que este ganhasse o status de morto-vivo a contemplar a eternidade, fosse tanto como potencial difusor de si próprio sempre em risco de se perder pelas rebarbas do esquecimento que tem o tamanho da profundidade dos rodapés colocados sob o véu que se conceitua como história, fosse de fato um expansor que teria de assistir, através do caminhar do tempo, às suas possíveis proles o transgredirem enquanto gene – pois haveriam, também, e muito, de pegar traços daqueles e daquelas que se dispusessem a se deixarem penetrar por sua forma, que lhes  seria atrativa, e deixassem que dentro de si se concebesse o conteúdo contido nesta estrutura textual pra dar vida a uma nova – talvez o deformassem à revelia e até, quem sabe, o superassem, como cabe sempre às gerações futuras fazer em relação às passadas.

Olhava o programa aberto e os pensamentos se afloravam e se agilizavam mais ainda do que antes, como se essa folha de papel que vive entre dois mundos distintos, mas em nosso tempo complementares – o material e o virtual – estimulasse as ideias tal qual, ou mais, a uma droga química que resulta para o corpo uma sensação intensa de euforia. A festa da linguagem rolava solta sob a testa suada do escritor perdido num abismo descomunal entre a ansiedade e o autocontrole. Daí, perdidos alguns minutos brincando na ciranda das palavras – lhe acumulando também, não bastasse todo o resto, uma sensação leve, mas insistente de tontura - pensou que talvez fosse interessante pensar a própria secularidade do programa de texto ou, mais especificamente, do papel em branco que era papel, sem sê-lo de fato.

“Mas como sem sê-lo de fato? Tem este papel a função do papel que é resultado da derrubada de milhares de árvores e de sua industrialização sequencial; Tem o formato, mesmo que virtualmente construído de papel e eterniza o que nele fica a menos que algumas, ou alguma, mãos humanas tomem a ação de destruí-lo. Pois então é papel sim. Pensando melhor, posso vê-lo apenas e interagir com ele diretamente, mas interajo diretamente sem tocá-lo.”

Ficou se perguntando o que Aristóteles acharia daquele antagonismo latente e outros precursores e predecessores das ideias empiristas. Era material no sentindo filosófico, sem dúvida, mas não no sentido das ciências duras. As epifanias e desconstruções martelavam em sua cabeça e o faziam escravo de tantos debates distintos, congruentes e conflitantes, que começara a achar melhor dar-lhes um último suspiro, pelos toques do teclado, como partes vivas de sua mente ou senão acabaria que sua sanidade – se é que isso existe – seria comida, mastigada e deglutida por completo por estes fragmentos de conteúdo angustiados, incompletos e barulhentos. Agora, o próximo passo era como começar a cerimônia póstuma aos ilustres agitadores, para que se silenciassem de vez ou que fossem gritar por outras mentes que não mais a sua. Entre devaneios e olhares fixos olhou uma tapeçaria que tinha uma série de tecidos trançados pulando para fora da plataforma plana também cuidadosamente trançada e formando desenhos que só podiam ter sentido quando vistos em conjunto. Não. Na verdade, constatara que o sentido era mais uma conjuração de sua própria transcendência mental; Que aquilo, como tudo e nada, só têm sentido porque lhe damos arbitrariamente um, ou vários, constituindo o estandarte de nosso próprio reinado de valores adquiridos pelas objetividades e subjetividades que brotam de nossas vivências através do que carinhosamente apelidamos de signos.

Uma válvula girara mais uma vez em sua cabeça; Outra porta que antes estava lotada de agitadores discursistas se abrira e agora estes, junto aos que pela sala de estar da consciência já estavam, começaram uma luta calorosa, e aparentemente embasada, de fazer inveja tanto às assembleias estudantis de nosso momento histórico quanto aos gladiadores de outrora. Ou não, afinal, lembrou-se que entendera certa vez que a história como a concebemos não passa de especulação, recorte e sentido, mas na verdade pouco importa. O que importava era que, se antes a bagunça já estava formada, agora deixava de cabelos em pé a mais célebre das cientistas à qual se incumbe o trabalho de reformar constantemente os discursos, palavra por palavra, pelos neologismos que brotam da autocrítica à sua própria insuficiência, fadados a se tornarem, se aceitos forem, velharias repetitivas ou, se repulsados pelos os agentes que as apreendem, à classificação de doentes terminais e, portanto, ao seu próprio fim instantâneo.

A persistência das ideias o mantinha tanto ou mais acordado do que se tivesse bebido toda a safra de café já vendida na história da humanidade. Podia entender dessa forma porque, de certa maneira, parte de si era produto de toda essa produção, comércio, significação e status contidos num líquido tão emblemáticos para o sistema das horas contadas. Emblema este que veio de sua utilidade efetiva para com os corpos, mas que, a partir dos corpos, figurou-se em algo maior, dada as suas representatividades e onipresença em várias habitações, ruas, fazendas e matas espalhadas pelo globo terrestre. “Conseguimos a proeza de sermos estúpidos e geniais num mesmo espaço de tempo.” Pensou quando divagava sobre a questão do café. E de novo notara que outra porta havia sido aberta. Suas pernas dançavam como se tocassem uma bateria de pedal duplo e os braços como se toda a sua estrutura física fosse tomada por uma convulsão consciente ou, o que diria o discurso médico, por uma síndrome, transtorno ou qualquer coisa que o próprio discurso identificasse como descontínuo à norma pré-estabelecidade a qual a velha linguagem, em toda a sua sabedoria e estupidez, tal qual seus agentes, cunhou de sanidade.

Quando voltara ao assunto da sanidade, sentiu que na entrada da sala uma série de agitadores se preparava para arrombar mais uma barreira que os separava do cômodo central da consciência. Antes que estes conseguissem pela força instalar de vez uma balbúrdia completa e talvez irreparável, o escritor formara um paredão de fuzilamento com as que já estavam a gritar por horas a fio e começou a disparar, letra por letra, o ritmo de suas mortes. Pouco a pouco as ideias e pensamentos foram se silenciando ao caírem duras no papel que o autor ainda não conseguira definir se era papel ou não; E antes que matasse também os debatedores desta questão tão importante que girava em torno do papel ser ou não papel, decidiu que seria melhor deixá-los viver por mais tempo em seu universo, de forma que tivessem mais tempo para angariar vivência e conhecimento, a fim de chegarem num consenso.

Escolheu os agitadores a dedo e os organizou para que ficassem na formação, a seu ver, mais bela de ser materializada, para que formassem, além de seu conteúdo, um conjunto que fosse sublime, apesar de trágico, aos próximos que se dispusessem a lhes dar vida ao transarem com estes, numa necrofilia socialmente aceita e estimulada que se manifesta pelo contato do leitor com a leitura; Sublime e trágico, como tenta projetar, pra fim de sua própria manutenção, o poder hegemônico, através de seu signo mais temeroso, apaixonado e impactante: A guerra.

Numa primeira tentativa, as ideias tiveram de ser ressuscitada para o plano metafísico criado por seu cérebro – e/ou espírito - porque a ordem dos fuzilados não agradou ao ditador que aqui chamamos de escritor, ou autor. Repensou e finalmente começara o ritmo do teclado novamente:

“Sentou-se a frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe que o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e desaparece antes que se possa o nomear...”.



(Arthur Valente)