Sentou-se à
frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe que
o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e
desaparece antes que se possa o nomear. Tinha pressa sem saber exatamente de
quê, pois preso a seu próprio HD interno auto-comandado e sem limite de memória
ainda tentava, com muita dificuldade, organizar, ao menos a princípio, o tema
para o qual pretendia dispor de algumas horas a fim de dar-lhe materialidade, ou vida, no momento
mesmo em que iria romper-lhe a organicidade pra que este ganhasse o status de
morto-vivo a contemplar a eternidade, fosse tanto como potencial difusor de si
próprio sempre em risco de se perder pelas rebarbas do esquecimento que tem o
tamanho da profundidade dos rodapés colocados sob o véu que se conceitua como
história, fosse de fato um expansor que teria de assistir, através do caminhar
do tempo, às suas possíveis proles o transgredirem enquanto gene – pois
haveriam, também, e muito, de pegar traços daqueles e daquelas que se dispusessem
a se deixarem penetrar por sua forma, que lhes
seria atrativa, e deixassem que dentro de si se concebesse o conteúdo
contido nesta estrutura textual pra dar vida a uma nova – talvez o deformassem
à revelia e até, quem sabe, o superassem, como cabe sempre às gerações futuras
fazer em relação às passadas.
Olhava o
programa aberto e os pensamentos se afloravam e se agilizavam mais ainda do que
antes, como se essa folha de papel que vive entre dois mundos distintos, mas em
nosso tempo complementares – o material e o virtual – estimulasse as ideias tal
qual, ou mais, a uma droga química que resulta para o corpo uma sensação
intensa de euforia. A festa da linguagem rolava solta sob a testa suada do
escritor perdido num abismo descomunal entre a ansiedade e o autocontrole. Daí,
perdidos alguns minutos brincando na ciranda das palavras – lhe acumulando
também, não bastasse todo o resto, uma sensação leve, mas insistente de tontura
- pensou que talvez fosse interessante pensar a própria secularidade do
programa de texto ou, mais especificamente, do papel em branco que era papel,
sem sê-lo de fato.
“Mas como
sem sê-lo de fato? Tem este papel a função do papel que é resultado da
derrubada de milhares de árvores e de sua industrialização sequencial; Tem o
formato, mesmo que virtualmente construído de papel e eterniza o que nele fica
a menos que algumas, ou alguma, mãos humanas tomem a ação de destruí-lo. Pois
então é papel sim. Pensando melhor, posso vê-lo apenas e interagir com ele
diretamente, mas interajo diretamente sem tocá-lo.”
Ficou se
perguntando o que Aristóteles acharia daquele antagonismo latente e outros
precursores e predecessores das ideias empiristas. Era material no sentindo
filosófico, sem dúvida, mas não no sentido das ciências duras. As epifanias e
desconstruções martelavam em sua cabeça e o faziam escravo de tantos debates
distintos, congruentes e conflitantes, que começara a achar melhor dar-lhes um
último suspiro, pelos toques do teclado, como partes vivas de sua mente ou
senão acabaria que sua sanidade – se é que isso existe – seria comida,
mastigada e deglutida por completo por estes fragmentos de conteúdo
angustiados, incompletos e barulhentos. Agora, o próximo passo era como começar
a cerimônia póstuma aos ilustres agitadores, para que se silenciassem de vez ou
que fossem gritar por outras mentes que não mais a sua. Entre devaneios e
olhares fixos olhou uma tapeçaria que tinha uma série de tecidos trançados
pulando para fora da plataforma plana também cuidadosamente trançada e formando
desenhos que só podiam ter sentido quando vistos em conjunto. Não. Na verdade,
constatara que o sentido era mais uma conjuração de sua própria transcendência
mental; Que aquilo, como tudo e nada, só têm sentido porque lhe damos
arbitrariamente um, ou vários, constituindo o estandarte de nosso próprio
reinado de valores adquiridos pelas objetividades e subjetividades que brotam
de nossas vivências através do que carinhosamente apelidamos de signos.
Uma válvula
girara mais uma vez em sua cabeça; Outra porta que antes estava lotada de
agitadores discursistas se abrira e agora estes, junto aos que pela sala de
estar da consciência já estavam, começaram uma luta calorosa, e aparentemente
embasada, de fazer inveja tanto às assembleias estudantis de nosso momento
histórico quanto aos gladiadores de outrora. Ou não, afinal, lembrou-se que
entendera certa vez que a história como a concebemos não passa de especulação,
recorte e sentido, mas na verdade pouco importa. O que importava era que, se
antes a bagunça já estava formada, agora deixava de cabelos em pé a mais
célebre das cientistas à qual se incumbe o trabalho de reformar constantemente
os discursos, palavra por palavra, pelos neologismos que brotam da autocrítica à
sua própria insuficiência, fadados a se tornarem, se aceitos forem, velharias
repetitivas ou, se repulsados pelos os agentes que as apreendem, à
classificação de doentes terminais e, portanto, ao seu próprio fim instantâneo.
A
persistência das ideias o mantinha tanto ou mais acordado do que se tivesse
bebido toda a safra de café já vendida na história da humanidade. Podia
entender dessa forma porque, de certa maneira, parte de si era produto de toda
essa produção, comércio, significação e status contidos num líquido tão
emblemáticos para o sistema das horas contadas. Emblema este que veio de sua
utilidade efetiva para com os corpos, mas que, a partir dos corpos, figurou-se
em algo maior, dada as suas representatividades e onipresença em várias
habitações, ruas, fazendas e matas espalhadas pelo globo terrestre.
“Conseguimos a proeza de sermos estúpidos e geniais num mesmo espaço de tempo.”
Pensou quando divagava sobre a questão do café. E de novo notara que outra
porta havia sido aberta. Suas pernas dançavam como se tocassem uma bateria de
pedal duplo e os braços como se toda a sua estrutura física fosse tomada por
uma convulsão consciente ou, o que diria o discurso médico, por uma síndrome,
transtorno ou qualquer coisa que o próprio discurso identificasse como descontínuo
à norma pré-estabelecidade a qual a velha linguagem, em toda a sua sabedoria e
estupidez, tal qual seus agentes, cunhou de sanidade.
Quando
voltara ao assunto da sanidade, sentiu que na entrada da sala uma série de
agitadores se preparava para arrombar mais uma barreira que os separava do
cômodo central da consciência. Antes que estes conseguissem pela força instalar
de vez uma balbúrdia completa e talvez irreparável, o escritor formara um
paredão de fuzilamento com as que já estavam a gritar por horas a fio e começou
a disparar, letra por letra, o ritmo de suas mortes. Pouco a pouco as ideias e
pensamentos foram se silenciando ao caírem duras no papel que o autor ainda não
conseguira definir se era papel ou não; E antes que matasse também os
debatedores desta questão tão importante que girava em torno do papel ser ou
não papel, decidiu que seria melhor deixá-los viver por mais tempo em seu
universo, de forma que tivessem mais tempo para angariar vivência e
conhecimento, a fim de chegarem num consenso.
Escolheu os
agitadores a dedo e os organizou para que ficassem na formação, a seu ver, mais
bela de ser materializada, para que formassem, além de seu conteúdo, um conjunto
que fosse sublime, apesar de trágico, aos próximos que se dispusessem a lhes dar
vida ao transarem com estes, numa necrofilia socialmente aceita e estimulada
que se manifesta pelo contato do leitor com a leitura; Sublime e trágico, como
tenta projetar, pra fim de sua própria manutenção, o poder hegemônico, através
de seu signo mais temeroso, apaixonado e impactante: A guerra.
Numa
primeira tentativa, as ideias tiveram de ser ressuscitada para o plano
metafísico criado por seu cérebro – e/ou espírito - porque a ordem dos
fuzilados não agradou ao ditador que aqui chamamos de escritor, ou autor.
Repensou e finalmente começara o ritmo do teclado novamente:
“Sentou-se
a frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe
que o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e
desaparece antes que se possa o nomear...”.
(Arthur
Valente)