terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Sacro é Vulgar



As falas se entrelaçam num repente descontínuo. As intenções se confundem, se cruzam e se afastam escondidas sob vestes verbais que, em nossas mentes, não passam de disfarces propositalmente mal estruturados para que concretizemos de uma vez por todas aquilo que em nossos corpos transborda pelos membros e escorre pelos olhos.
Nos olhamos como quem pensa querendo sentir, pois usamos  a oralidade, a princípio, como consequência da língua, sendo que gostaríamos que nossas línguas fossem ferramentas para outro fim muito mais antigo e sincero do que a linguagem jamais poderá ser. E é o gaguejar uma constante, pois falamos à beça – e depressa – enquanto em nossa íntima racionalidade gostaríamos só de pensar que não gostaríamos mais de estar racionalizando coisa alguma; E apesar de conhecermos a solução imediata, ainda nos vemos presos aos medos encucados pela sociedade.
Me toca os braços e, como de forma natural, meu corpo responde ao gesto com um arrepio desenfreado que perpassa por todos os sentidos. Posso sentir que teu cheiro agora mudara também, assim como o meu olfato. Não precisamos mais dos olhos pra denunciarmos a nós mesmos e, por um momento, tão sublime e ágil como a carícia ainda insegura que faz a minha mão nas tuas costas, nos libertamos de todas as precauções introjetadas, expulsando a vergonha de nossa própria estética pra dar lugar ao apetite antes latente de nos fundirmos numa só figura.
Nossos corpos finalmente se põem a dançar como num ritual dionisíaco, onde o sacro e o animalesco formam uma dialética tão intrigante quanto sedutora e tão agressiva quanto carinhosa. Tão mundana e torpe quanto divina e sensata num diálogo em que os sons grunhidos ecoam como se fossem orações.
 O suor antes frio parece ter evaporado junto com o peso dos receios que nos cerceavam o prazer que tanto gritara para ser posto à experimentação. Queremos que nossas essências inflem a ponto de explodirem em fenômenos que fogem, ao mesmo tempo em que respeitam, a todas as regras de causa e efeito. E no lugar deste suor que agora desaparecera, brota um outro, mas quente e caprichoso, que nos permite o deslizar suave pela pele que esconde um universo muito mais intenso e interessante do que seu conteúdo biológico apresenta.
Me explora as partes todas que o cotidiano força a esconder; A tua boca macia e molhada fomenta em conjunto uma textura que, em meu imaginário, se assemelha ao toque das nuvens. Pois, então, que te peço pra chover em mim por inteiro, para que eu possa me afogar em tuas profundezas e sufocar ao sentir em meus pulmões todo o tesão de amplitude mais cósmica.
Nos desmanchamos e nos diluímos em derretimento mútuo concebido pelo prazer mais sólido. Não sei mais distinguir que partes me pertencem e quais são suas, pois vejo agora nossos corpos como espelhos que na verdade são portais, um para a dimensão do outro. Complementares, fundidos e difundidos para todos os espaços do cômodo no qual nos encontramos. Exaltados numa só projeção viva que se digladia consigo própria buscando ferozmente a mais expansiva satisfação.
Eu te amo com todo o meu corpo, por momento, e sei, pelo comportamento do teu, que a recíproca é verdadeira. O que mais pode nos bastar no presente do que nossa presença dúbia por ser una enquanto duas?
Me agarra, me morde, me arranha, me afaga, me acaricia, me vive pra que eu possa desfalecer em paz! Afinal, o sexo é a única guerra onde, se há respeito e vontade de ambas as partes, a tendência é que todos os lados saiam ganhando. Me toma pra ti e te entrega a mim como se nunca antes tivéssemos sido algo além de um elo. Como se não houvesse sociedade para repreender, nem história pra oprimir, nem passado pra carregar, nem futuro pra planejar. Me deixa sedento da tua saliva doce. Me endossa com as tuas frases ácidas que me sussurra ao ouvido só pra ver meu corpo enveredar e se distorcer.
Me rasga o corpo pra que a alma possa sair de uma vez. Pra que eu veja a sua também ascender ao ver a minha nua. Faz com jeito o todo pra que eu te peça pra fazer com força e deixe que depois se invertam, revertam e confluam os papéis de nossa performance transgressora e genial.
Me deixa ser a condição de existência do teu fluxo de vida e me pede pra que eu te deixe ser a máxima de minha própria vivência. Faz de mim teu refúgio mais confortável e me deixa fazer de ti a minha morada temporária. Me deixa estar você mesmo que depois o “ser” nos provoque um afastamento. [Que sejamos objetos e sujeitos um do outro para provar que o tempo ficara só no relógio, tanto quanto o espaço assume um semblante de ilusão.]
Goza pra que eu possa alegremente gozar do teu gozo e para que nossos prazeres fluxuosos tomem a proporção de rios e mares que se juntam para formar paisagens tão memoráveis, quanto sedutoras e que mesmo quando tal paisagem fugir ao nossos olhos limitados ao momento, que viva para sempre presa em nossas almas como a um símbolo de liberdade concebido pelo mundo para nos servir de combustível para nele permanecer. Fazer de tal símbolo um marco do que há de melhor para se vivenciar e torcer para que o gozo, através de nossa memória, ganhe lastro histórico.
Explodimos em deleito marcante e é incrível como, ainda assim, permanecemos colados como se dependêssemos um do outro para estarmos completos. Acaricio cada parte de ti tanto quanto ou mais do que se fosse minha, e me vira o rosto para sorrir um sorriso embriagado e exausto.
Como geralmente ocorre, o discurso é incapaz de ressaltar à materialidade aquilo que em nós já se eternizara. Continuamos a nos diluir e misturar numa alquimia de dar inveja a qualquer feiticeiro ou feiticeira que se desdobre para o desenvolvimento de tal arte. Pouco importa por quanto tempo seremos mistura. O que parece mais importar é o fato inabalável de que, mesmo depois que voltarmos à nossa própria particularidade individual, teremos guardados conosco, cada um, detritos deixados por essa junção que nos acompanharão, se tiverem mérito para tal, pelo menos até o último suspiro de nossa presença terrena.

(Arthur Valente)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Filosofia Contada


Sentou-se à frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe que o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e desaparece antes que se possa o nomear. Tinha pressa sem saber exatamente de quê, pois preso a seu próprio HD interno auto-comandado e sem limite de memória ainda tentava, com muita dificuldade, organizar, ao menos a princípio, o tema para o qual pretendia dispor de algumas horas a fim de  dar-lhe materialidade, ou vida, no momento mesmo em que iria romper-lhe a organicidade pra que este ganhasse o status de morto-vivo a contemplar a eternidade, fosse tanto como potencial difusor de si próprio sempre em risco de se perder pelas rebarbas do esquecimento que tem o tamanho da profundidade dos rodapés colocados sob o véu que se conceitua como história, fosse de fato um expansor que teria de assistir, através do caminhar do tempo, às suas possíveis proles o transgredirem enquanto gene – pois haveriam, também, e muito, de pegar traços daqueles e daquelas que se dispusessem a se deixarem penetrar por sua forma, que lhes  seria atrativa, e deixassem que dentro de si se concebesse o conteúdo contido nesta estrutura textual pra dar vida a uma nova – talvez o deformassem à revelia e até, quem sabe, o superassem, como cabe sempre às gerações futuras fazer em relação às passadas.

Olhava o programa aberto e os pensamentos se afloravam e se agilizavam mais ainda do que antes, como se essa folha de papel que vive entre dois mundos distintos, mas em nosso tempo complementares – o material e o virtual – estimulasse as ideias tal qual, ou mais, a uma droga química que resulta para o corpo uma sensação intensa de euforia. A festa da linguagem rolava solta sob a testa suada do escritor perdido num abismo descomunal entre a ansiedade e o autocontrole. Daí, perdidos alguns minutos brincando na ciranda das palavras – lhe acumulando também, não bastasse todo o resto, uma sensação leve, mas insistente de tontura - pensou que talvez fosse interessante pensar a própria secularidade do programa de texto ou, mais especificamente, do papel em branco que era papel, sem sê-lo de fato.

“Mas como sem sê-lo de fato? Tem este papel a função do papel que é resultado da derrubada de milhares de árvores e de sua industrialização sequencial; Tem o formato, mesmo que virtualmente construído de papel e eterniza o que nele fica a menos que algumas, ou alguma, mãos humanas tomem a ação de destruí-lo. Pois então é papel sim. Pensando melhor, posso vê-lo apenas e interagir com ele diretamente, mas interajo diretamente sem tocá-lo.”

Ficou se perguntando o que Aristóteles acharia daquele antagonismo latente e outros precursores e predecessores das ideias empiristas. Era material no sentindo filosófico, sem dúvida, mas não no sentido das ciências duras. As epifanias e desconstruções martelavam em sua cabeça e o faziam escravo de tantos debates distintos, congruentes e conflitantes, que começara a achar melhor dar-lhes um último suspiro, pelos toques do teclado, como partes vivas de sua mente ou senão acabaria que sua sanidade – se é que isso existe – seria comida, mastigada e deglutida por completo por estes fragmentos de conteúdo angustiados, incompletos e barulhentos. Agora, o próximo passo era como começar a cerimônia póstuma aos ilustres agitadores, para que se silenciassem de vez ou que fossem gritar por outras mentes que não mais a sua. Entre devaneios e olhares fixos olhou uma tapeçaria que tinha uma série de tecidos trançados pulando para fora da plataforma plana também cuidadosamente trançada e formando desenhos que só podiam ter sentido quando vistos em conjunto. Não. Na verdade, constatara que o sentido era mais uma conjuração de sua própria transcendência mental; Que aquilo, como tudo e nada, só têm sentido porque lhe damos arbitrariamente um, ou vários, constituindo o estandarte de nosso próprio reinado de valores adquiridos pelas objetividades e subjetividades que brotam de nossas vivências através do que carinhosamente apelidamos de signos.

Uma válvula girara mais uma vez em sua cabeça; Outra porta que antes estava lotada de agitadores discursistas se abrira e agora estes, junto aos que pela sala de estar da consciência já estavam, começaram uma luta calorosa, e aparentemente embasada, de fazer inveja tanto às assembleias estudantis de nosso momento histórico quanto aos gladiadores de outrora. Ou não, afinal, lembrou-se que entendera certa vez que a história como a concebemos não passa de especulação, recorte e sentido, mas na verdade pouco importa. O que importava era que, se antes a bagunça já estava formada, agora deixava de cabelos em pé a mais célebre das cientistas à qual se incumbe o trabalho de reformar constantemente os discursos, palavra por palavra, pelos neologismos que brotam da autocrítica à sua própria insuficiência, fadados a se tornarem, se aceitos forem, velharias repetitivas ou, se repulsados pelos os agentes que as apreendem, à classificação de doentes terminais e, portanto, ao seu próprio fim instantâneo.

A persistência das ideias o mantinha tanto ou mais acordado do que se tivesse bebido toda a safra de café já vendida na história da humanidade. Podia entender dessa forma porque, de certa maneira, parte de si era produto de toda essa produção, comércio, significação e status contidos num líquido tão emblemáticos para o sistema das horas contadas. Emblema este que veio de sua utilidade efetiva para com os corpos, mas que, a partir dos corpos, figurou-se em algo maior, dada as suas representatividades e onipresença em várias habitações, ruas, fazendas e matas espalhadas pelo globo terrestre. “Conseguimos a proeza de sermos estúpidos e geniais num mesmo espaço de tempo.” Pensou quando divagava sobre a questão do café. E de novo notara que outra porta havia sido aberta. Suas pernas dançavam como se tocassem uma bateria de pedal duplo e os braços como se toda a sua estrutura física fosse tomada por uma convulsão consciente ou, o que diria o discurso médico, por uma síndrome, transtorno ou qualquer coisa que o próprio discurso identificasse como descontínuo à norma pré-estabelecidade a qual a velha linguagem, em toda a sua sabedoria e estupidez, tal qual seus agentes, cunhou de sanidade.

Quando voltara ao assunto da sanidade, sentiu que na entrada da sala uma série de agitadores se preparava para arrombar mais uma barreira que os separava do cômodo central da consciência. Antes que estes conseguissem pela força instalar de vez uma balbúrdia completa e talvez irreparável, o escritor formara um paredão de fuzilamento com as que já estavam a gritar por horas a fio e começou a disparar, letra por letra, o ritmo de suas mortes. Pouco a pouco as ideias e pensamentos foram se silenciando ao caírem duras no papel que o autor ainda não conseguira definir se era papel ou não; E antes que matasse também os debatedores desta questão tão importante que girava em torno do papel ser ou não papel, decidiu que seria melhor deixá-los viver por mais tempo em seu universo, de forma que tivessem mais tempo para angariar vivência e conhecimento, a fim de chegarem num consenso.

Escolheu os agitadores a dedo e os organizou para que ficassem na formação, a seu ver, mais bela de ser materializada, para que formassem, além de seu conteúdo, um conjunto que fosse sublime, apesar de trágico, aos próximos que se dispusessem a lhes dar vida ao transarem com estes, numa necrofilia socialmente aceita e estimulada que se manifesta pelo contato do leitor com a leitura; Sublime e trágico, como tenta projetar, pra fim de sua própria manutenção, o poder hegemônico, através de seu signo mais temeroso, apaixonado e impactante: A guerra.

Numa primeira tentativa, as ideias tiveram de ser ressuscitada para o plano metafísico criado por seu cérebro – e/ou espírito - porque a ordem dos fuzilados não agradou ao ditador que aqui chamamos de escritor, ou autor. Repensou e finalmente começara o ritmo do teclado novamente:

“Sentou-se a frente do computador e abriu o programa de textos com a pressa de quem sabe que o pensamento, assim como a luz ou talvez até em velocidade maior, surge e desaparece antes que se possa o nomear...”.



(Arthur Valente)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Personas

Olhou os cantos buscando furtar a face do julgamento certo que lhe viria a pôr à prova. De certas coisas na vida não se pode escapar e, geralmente, aquele que tem o dom de nos encontrar é também o que mantém sobre nós o olhar mais crítico. O julgamento mais severo . O desdém mais doído.
Tentava constantemente não encarar o destino que lhe esperava à frente... E quem não o faria?
A dor de alma, de orgulho ferido e de impotência são, juntas, o fator essencial de uma implosão emocional. Não é necessário o estopim; eles são como era um velho Raul... O início, o fim e o meio.
"Não posso detê-lo a falar. Já adiei demais as vossas palavras, os vossos insultos, os vossos tormentos incabíveis em si, quanto o mais em mim." - Pensou.
Diante da adversidade inevitável, colocou-se a agir como se é possível dentro do entendimento comum. Podia tentar correr do bicho e ser pego com mais selvageria em outro momento. Não valia o preço, era claro. E era ainda mais bizarro porque o desesperado em questão guardava certo apreço por seu chacal. Apesar da franqueza, sobrava-lhe intimidade e cuidado e, pensando de outra forma, agia, o reflexo da opressão, como se quisesse realmente proteger. Como se realmente se interessasse, de forma a ser diferente de todos os outros e de todo o tudo que poderia ser posto em comparação.
Negar-lhe o direito inalienável de falar era pra si também tortura.
"Pois que fale." E virou-se em direção à face mais sombria e sóbria que já havia visto.
Os olhos trocaram faíscas e foi aí que se iniciou uma guerra retórica angustiante, mas verdadeiramente construtiva. Porque ele sabia, ele que era antes temedor e agora adversário, que aquela feição nefasta contrastava com a sabedoria das palavras pesadas do julgador. Inflou-se até quase deixar-se espalhar por completo. Mas suportou. E, além de viver pra pensar, ainda contou a si mesmo uma série de vezes o que lhe havia contado o já não mais déspota. De vez em quando punham-se a se entender os dois. Muito quando o antes desesperado, depois corajoso e, por fim, aliviado se dava a liberdade de ouvir o que o outro lhe tinha a a dizer.
Olhou por uma última vez seu benfeitor e lhe agradeceu em silêncio. Este último lhe copiou sinal.
Notou algo estranho no cumprimento de volta. Talvez uma mudança de luz o tenha feito enxergar um detalhe que ainda não havia projetado. Chegou mais perto e enxergou que o problema não era da pele, mas daquilo que a estruturava esteticamente.
Pensou por alguns segundos.
Foi andando instintivamente à cozinha.
- Amor, cê sabe onde tem pano limpo?
- Por que, meu bem?
- O espelho, amor, tá todo empoeirado.


(Arthur Valente)