terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Personas

Olhou os cantos buscando furtar a face do julgamento certo que lhe viria a pôr à prova. De certas coisas na vida não se pode escapar e, geralmente, aquele que tem o dom de nos encontrar é também o que mantém sobre nós o olhar mais crítico. O julgamento mais severo . O desdém mais doído.
Tentava constantemente não encarar o destino que lhe esperava à frente... E quem não o faria?
A dor de alma, de orgulho ferido e de impotência são, juntas, o fator essencial de uma implosão emocional. Não é necessário o estopim; eles são como era um velho Raul... O início, o fim e o meio.
"Não posso detê-lo a falar. Já adiei demais as vossas palavras, os vossos insultos, os vossos tormentos incabíveis em si, quanto o mais em mim." - Pensou.
Diante da adversidade inevitável, colocou-se a agir como se é possível dentro do entendimento comum. Podia tentar correr do bicho e ser pego com mais selvageria em outro momento. Não valia o preço, era claro. E era ainda mais bizarro porque o desesperado em questão guardava certo apreço por seu chacal. Apesar da franqueza, sobrava-lhe intimidade e cuidado e, pensando de outra forma, agia, o reflexo da opressão, como se quisesse realmente proteger. Como se realmente se interessasse, de forma a ser diferente de todos os outros e de todo o tudo que poderia ser posto em comparação.
Negar-lhe o direito inalienável de falar era pra si também tortura.
"Pois que fale." E virou-se em direção à face mais sombria e sóbria que já havia visto.
Os olhos trocaram faíscas e foi aí que se iniciou uma guerra retórica angustiante, mas verdadeiramente construtiva. Porque ele sabia, ele que era antes temedor e agora adversário, que aquela feição nefasta contrastava com a sabedoria das palavras pesadas do julgador. Inflou-se até quase deixar-se espalhar por completo. Mas suportou. E, além de viver pra pensar, ainda contou a si mesmo uma série de vezes o que lhe havia contado o já não mais déspota. De vez em quando punham-se a se entender os dois. Muito quando o antes desesperado, depois corajoso e, por fim, aliviado se dava a liberdade de ouvir o que o outro lhe tinha a a dizer.
Olhou por uma última vez seu benfeitor e lhe agradeceu em silêncio. Este último lhe copiou sinal.
Notou algo estranho no cumprimento de volta. Talvez uma mudança de luz o tenha feito enxergar um detalhe que ainda não havia projetado. Chegou mais perto e enxergou que o problema não era da pele, mas daquilo que a estruturava esteticamente.
Pensou por alguns segundos.
Foi andando instintivamente à cozinha.
- Amor, cê sabe onde tem pano limpo?
- Por que, meu bem?
- O espelho, amor, tá todo empoeirado.


(Arthur Valente)

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