quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Relação de Tempo e Espaço



Eu tinha de ir procurar um emprego – Pelo menos tem sido essa a imposição da minha avó ultimamente.  “Quer virar um vagabundo que nem o encostado do seu pai que vive de sombra e álcool na casa do seu padrinho?!” Diz ela constantemente. Só não sei se as repetições são de fato por medo de que eu me entregue ao ócio, que ela reconhece exclusivamente como preguiça – Porque minha avó também não é do tipo de pessoa que crê em “ócio produtivo”. Acho que ela pensa que os artistas famosos já vieram famosos. Prontos pra ganhar o mundo em três minutos, tipo miojo ou lasanha congelada – ou à tristeza pelo fato de já não ter mais minha mãe e meu pai, que ela não cansa de insultar, tomado pela culpa e pela vergonha de ter sido ele, aparentemente, o motivo do suicídio de sua falecida mulher. Quer dizer, na verdade eu não sei se a culpa foi dele mesmo. Segundo o que foi dito por minha avó, não restaria dúvida acerca do assunto. Ela, a culpa, é toda dele, meu pai, por suas horas trabalhadas a mais, seu descaso com o casamento, com a família, com Deus e com mais uma porrada de coisas que, sinceramente, apesar da vitrola quebrada, não consigo me lembrar.
A verdade é que minha mãe se suicidara sem se suicidar. Há um tempo - eu via - ia tomando remédios e mais remédios initerruptamente, tanto na ida, quanto na volta do trabalho – E possivelmente durante, mas eu não estava presente pra saber.  Ai, bom, de vez em quando ela subia ao terraço do prédio e fumava um cigarro de cheiro estranho e eu claramente notei que não devia se tratar de coisa boa porque, assim como criança feliz e cachorro bem cuidado, ela não sabia disfarçar quando estava fazendo coisa errada. Eu também nunca soube.
Quando o fúnebre dia veio. Hum... Digo, o dia da morte da minha mãe. Nada estava diferente dos dias anteriores. Ele começou e ameaçava terminar como a todos os outros. Minha mãe veio e me acordou para a escola com um café-com-leite bem quente. Levantei desnorteado tomando o café, deixei-o em cima da mesa e fui tomar banho. As reações do café-com-leite – Quem tem o costume de tal bebida pelo horário da manhã sabe quais são – começaram a, literalmente, explodir em meu sistema digestório. Já estava acostumado. Deixei o chuveiro ligado e fui sentar no trono onde todos são reis, rainhas, príncipes ou viciados – Essa vai para o Tobby, meu cachorro que, por motivos óbvios penso eu, ama água sanitária mais do que ama a minha vó – e fiz o serviço sentado. Levantei-me e dei aquela checadinha na obra. Voltei ao banho. Sai do banho. Fui me arrumar e antes que pudesse perguntar, como de costume, à minha mãe onde estava uma calça jeans rasgada que eu usava com tanto apreço – Porque mãe, sendo dona de casa ou não, sempre sabe dessas coisas – ela foi trabalhar com a pressa e a veracidade de uma leoa faminta, apesar de eu saber que toda essa correria se dava pelo trem, que nada mais é que um conjunto de latas ambulante que carrega seres humanos, fazendo com que estes tenham inveja dos picles, pelo espaço que lhes sobram dentro das latas de supermercado.
Terminei meus apetrechos e fui à famigerada escola. A primeira aula era geometria. Olhei o livro em minha frente, ainda fechado, que tinha uns detalhes em vermelho-sangue na capa e, partindo dai, comecei a me lembrar de um filme incrível sobre os conflitos sociais na África, sobre a exploração do povo por eles próprio e mais pelos estrangeiros, sobre a AIDS, sobre a fome... Nossa, ainda estávamos na primeira aula e meu estômago já gritava de fome. “Será que a cantina vai mudar o prato hoje?” Pensei. Não aguentava mais comer o mesmo pão, que estava sempre velho, com aquele leite sabor tudo, menos leite. Ai lembrei do café-com-leite e meu estômago deu sinais de revolta de novo. Mas segurei-me. Afinal, acho que é bem sabido entre os que já frequentaram a escola o que acontece com a vida social de quem faz seu serviço sentado no banheiro do colégio. Tirando que pelo estado do banheiro, acho que poderia até pegar AIDS só por sentar. “Hahahahaha...” Ri mentalmente da minha própria piada de mau gosto. Senti-me mal pela piada, em seguida, mas já entrando no questionamento sobre piadas e limites que ouvira tanto falar nos últimos tempos. Será que a piada tem limites mesmo ou será que é esse tal de politicamente correto que é tão babaca quanto os humoristas atuais reclamam? Sei lá, pra ser sincero. Não gostava de ser zoado na escola, senti-me mal com muitas piadas que fizeram a meu respeito, principalmente as que faziam sobre a minha cor-da-pele.
Triiiiiiiiiiiiim!
O sinal do intervalo tocou e percebi que passara três aulas perdido em meus pensamentos. O livro de geometria continuava a minha frente, ainda fechado. Pensei, já me levantando: “Queria ser e fazer tantas coisas. Escalar montanhas, fazer shows – Mesmo sem saber tocar instrumento algum – Comer de tudo um pouco, intelectualizar-me. Mas, caramba, difícil mesmo é estudar geometria.” E fui saindo.
O resto do meu tempo escolar não fugira muito disso, mas vou deixar à interpretação porque assim, talvez, na cabeça de quem me ouve ele fique mais interessante.
Voltei pra casa na hora do almoço e encontrei minha mãe conversando com o meu pai, ambos sentados em sua cama de casal e chorando com um ar desesperatório. Cumprimentei-os e esbocei uma expressão de preocupação espontaneamente, apesar de minha mãe sempre dizer que não deveria ficar me preocupando com “assuntos de adulto”, como se eu fosse feito de vidro ou algo assim. Ou como se não fosse entender por conta da idade. Mas entendi tudo. Meu pai agora estava desempregado e, enquanto comia na sala, ouvi seus berros de raiva e medo com relação às contas, aos gastos, à casa, a mim e a ela, minha mãe. Depois de um tempo de silêncio doloroso – Pra mim, ao menos, por conta da curiosidade e da angústia que já haviam tomado conta da minha cabeça – Ele se levantou e saiu dizendo que não voltaria pra casa enquanto não arranjasse um trabalho novo. Minha mãe saiu do quarto segurando o choro, acho que por minha causa, e foi se encher de remédios como sempre. Abriu a porta e foi saindo em sentido à escada que levava ao terraço. Fui atrás. Lá estava ela fumando o tal cigarro de cheiro esquisito e depois de chorar alguns minutos, começou a dançar loucamente – E perigosamente, diga-se de passagem – sobre o piso cinza que formava a laje do alto do prédio. Num segundo, quando dançava perto do abismo, não sei, sinceramente, se por desequilíbrio físico ou por emocional, caiu e, sem contrariar a equação fundamental da força na física, esparramou-se no chão, desmembrada. E lá estava eu agora olhando-a virar algo quase irreconhecível do alto do prédio, pois, claro que assim que ela caíra eu corri em direção ao vão que separa a linha tênue entre uma bela vista alta e um destino finalizado pelo chão de asfalto frio.
Pois bem, o que viera depois foi um rápido surto alcóolatra em meu pai, que foi se entocar na casa do meu padrinho e eu, agora sem ter muito pra onde ir, fui parar na minha vó. Chegando até este momento, onde conto tal relato.
- Ok, rapaz. Agora é hora do seu remédio. Nossa sessão se encerrou por hoje.
- Sessão? Hãn? Quem é a senhora? Onde está a minha avó? Onde está o Tobby?
- Só um minutinho. Levanta-se a moça que está sentada defronte a mim e vai até a porta cochichar algo com alguém. Meu Deus! Onde estou?! Que lugar é esse?! Não era aqui que eu estava a cinco minutos! Vejo paredes mal cuidadas e sujas. No teto existe uma marca de encanamento solto, como eu costumava ver próxima a mesa onde eu sentava na escola. Estou deitado sobre um sofá confortável, mas sinto uma de minhas mãos presas. Vejo uma algema no pulso esquerdo agarrada a uma cama que, apesar de não saber como, reconheço claramente. Ela, a moça, veste um jaleco e nesse momento entram dois homens enormes de cor parda, um pouco mais claros que eu, já vindo me segurando pelos braços. Grito desesperadamente uma série de frases soltas com conteúdo ininteligível. Minha cabeça parece uma montanha russa do inferno.
- Querido, tenha calma. Já fizemos isso antes, não se lembra? Vou te explicar, de novo. Sua querida vovó não está mais entre nós há mais ou menos 5 anos. Seu pai mais tarde vem ai pra te visitar. Vai ficar tudo bem.
Olho no espelho que está grudado na porta, atrás da moça, e vejo meu reflexo. Tenho uma barba enorme e olheiras mais escuras que a minha própria pele. Os olhos perdidos. Não me reconheço! O que fizeram comigo, meu Deus? Quem é esse que assumiu o meu lugar? Cadê minha avó? Cadê o Tobby? Quero ir ver minha mãe. Por quê? Por quê?
E choro desesperadamente ainda soltando urros quase irreconhecíveis, quando sinto uma picada no braço direito. Ouço de fundo uma voz masculina.
- Esse aqui não tem mais jeito, doutora. Melhor entregar pro pai ou algo do tipo. Ele já está a anos por aqui e não apresenta melhora, por mais que a senhora tente. De que adianta deixa-lo ai comendo verba do Estado? O coitado vai morrer achando que ainda tem 15 anos.
- Com todo o respeito, enfermeiro, deixe que eu cuido do meu trabalho. Deixem-no descansar e amanhã volto a vê-lo. Talvez seja diferente de hoje.
E senti meu corpo desfalecendo levemente.
Acordei. Estou em casa.
- Moleque! Já lhe disse que não o quero o dia inteiro fazendo nada. Vai acabar ficando igual ao traste do seu pai! Bêbado, desempregado e encostado.
- Mas, vó...

Fim.


(Arthur Valente)

2 comentários:

  1. Arthur!
    Isso é comparável a Machado! Seja conto ou não, o texto é ótimo!!!
    Carlos Oliveira (preguica de logar no google)

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    1. Nossa, meu querido. Tem feijão atômico ainda pra chegar no Machadão, hein... Lisonjeadíssimo. Brigaaadooo!

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