domingo, 17 de novembro de 2013

O Conto


As horas passavam rapidamente, mas o acumulo de trabalho cansava seu corpo e espírito. Só queria que tudo terminasse pra poder se recolher à seguridade do lar e finalmente escrever o conto que lhe daria o mérito de assumir em profissão aquilo que sempre fora sua vocação; Vocação esta que lhe era clara, mas que, para que pudesse de fato exercê-la como um profissional remunerado, ou seja, para que pudesse usá-la como seu sustento, deveria provar a um corpo de jurados mal pagos e frustrados – Justamente por não partilharem do mesmo dom que ele, apesar de terem tentado e estudado muito para tal  que seu talento com as letras ia muito além de escrever e-mails e conferir a contabilidade diária de um estabelecimento voltado à venda de alimentos e bebidas.
A pressão, de certa forma, o consumia. Mas a ideia de finalmente ter a oportunidade de transformar seu sonho – Satirizado pelo conjunto de pessoas, no qual ele nomeava como família e, ao mesmo tempo, estimulado por seus amigos, menos os invejosos, claro – em um objetivo, não só palpável, mas também posto em prática, aparentemente,em curto prazo, engrandecia sua alma e fazia com que, mesmo exaurido, retirasse forças de não sabe bem onde para se sentar e digitar linhas e mais linhas até que sua obra estivesse pronta.
Porém, não se pode deixar de lado o fato irrefutável que acompanha todos estes ditos talentosos no ramo da arte: Sempre existirá um ônus proporcional ao bônus. Assim como tudo na natureza, o equilíbrio entre as características que compõem uma matéria viva – sejam estas materiais, patológicas ou espirituais para os que creem - devem estar na mesma proporção de intensidade para que este ser seja autossustentável, para que se suporte. Logo, para cada característica considerada boa, ou mesmo dentro da própria característica boa, deve existir um lado proporcionalmente ruim. Tratando em miúdos, um talento se reconhece através de características da personalidade do indivíduo que, dependendo da situação, pode vir a se tornar uma maldição. As principais características que compõem o talento artístico são, geralmente, sentir demais e não conseguir manter por muito tempo a cabeça neste plano terreno, pois é necessário o ócio criativo –Comumente chamado de “vagabundagem” pela sociedade vigente das máquinas de trabalho desintelectualizadas, insensíveis e desumanas que, por ironia, são seres “pensantes” de carne e osso  e tais características juntas, apesar de resultarem numa vocação tão bela, numambiente de trabalho administrativo que, por base, exige atenção e frieza, podem acabar trazendo resultados catastróficos. E assim foi.
A porta do escritório se abria enquanto o jovem escritor navegava por entre os mares profundos da mente tentando concretizar em palavras - em uma história curta e, de preferência, com períodos igualmente breves -  todas a ideias ainda abstratas que pretendia desmembrar acerca do tema que escolhera. Sua cabeça funcionava com um terminal de trem bala, onde os trens eram os pensamentos que iam e vinham rapidamente, as vezes rápidos demais para deixarem qualquer rastro que pudesse ser anotado em sua velha caderneta de bolso que ele sempre carregara com o intuito de não deixar com que os melhores se perdessem de vez na imensidão profunda de seu intelecto.
- E ai, Vini?! Tá viajando pra variar, né? Cadê o relatório que eu te pedi há duas horas pra encaminhar pro contador? Tá pronto?
Era a gerente administrativa que falava ao rapaz estirado na cadeira de plástico, olhando para a tela do computador com aqueles olhos parados que seriam de igual valia na função de enxergar se estivessem fechados. Ou talvez até enxergassem mais estando no escuro.
Ela era uma mulher de estatura mediana e beleza estética reluzente, porém, com uma voz de gralha semi-esganadaque fazia questão de ecoar por todo ambiente num tom atordoante até mesmo para os que têm um problema avantajado de audição. Seu corpo era bem definido artificialmente, construído com horas e horas de levantamento de peso seguidas rotineiramente por uma dieta nutricional pré-estabelecida e tão metódica quanto aprópria personalidade da moça. Seus seios eram redondos e firmes, e suas coxas, assim como os glúteos, abundantes e que beiravam a prepotência de sua postura. Seus olhos eram verdes como uma floresta tropical, mas cheios de ódio e indiferença como aos desmatadores da região amazônica. Sua boca era pequena e rosada como de uma dama, mas suas palavras eram arrogantes e grosseiras como as de uma princesa mimada. Seus dentes eram brancos como a neve, assim como sua pele, mas seu sorriso era falso e obscuro como a de uma manhã nublada e chuvosa entre os arranha-céus. Vestia roupas caras, mas sua essência parecia não ter valor real algum. Suas sobrancelhas eram bem delineadas, mas davam-lhe expressões cruéis e maledicentes.  Seu ego era do tamanho do renome da universidade pública na qual havia se formado, mas seu conhecimento intelectual e de mundo eram pequenos e inconsistentes, como a uma escola do sertão nordestino. Por fim, ela era nada mais, nada menos, do que uma representação comum dos gestores atuais que circulam pelo mercado trabalhista supérfluo, preconceituoso e ditatorial.
Hãn? Nossa, Adri, desculpa! Esqueci completamente...Me dá cinco minutos que já resolvo isso.
Assim que o rapaz pardo, de feições tímidas e olhar já não mais vidrado no monitor, mas agora atento aos olhos contraditórios da carrasca que lhe falava, terminou a frase, um rugido monstruoso saltou de dentro daqueles lábios rosados.
- Puta merda, Vinícius! Pô, cara, toda a vez é a mesma coisa! Eu te dou a porra de uma oportunidade de emprego com salário fixo pra você conseguir dar jeito nessa sua merda de vida e sair daquele fim de mundo que você saiu e é esse resultado que você me devolve?! Tá de sacanagem, cacete?! Qual o seu problema?! Não aguento mais te pedir as coisas e você me vir com a mesma resposta... Quê que foi? Tá vindo trabalhar chapado? Tá com preguiça? Te garanto que em dois minutos arranjo outro pé rapado pra botar no seu lugar... E a porra do e-mail que eu te pedi pra mandar pro fornecedor com as mercadorias que a casa precisa? Pelo menos isso você fez ou ficou o dia inteiro olhando pro computador com essa cara de zumbi?
O que ela dizia não era bem verdade. Ele estava lá, na função do escritório, há cerca de dois meses e até aquela última semana nunca havia descumprido com as obrigações para as quais havia sido contratado. Mas, como já foi dito, a junção de pressão, cansaço acumulado e vislumbre pela oportunidade que lhe fora apresentada fizeram com que sua cabeça andasse por milhares de lugares, menos pelo foco no emprego e durante os cinco longos dias que se passaram desde que a semana começara, cometera alguns erros por, principalmente, desatenção. Mas ele tentou se manter calmo, apesar da situação, pois por pior que fosse o convívio com aquela mulher que o contratara, o dinheiro que recebia era necessário e sabia que se fosse demitido agora, ainda em experiência, além de não receber quase nada pelos dois meses trabalhados acabaria tendo de voltar para a casa de seus tios tão autoritários e agressivos que fariam sua gestora parecer um querubim sem asas.
- Desculpe-me, Adriana, novamente. Minha intenção não é prejudicar a empresa... É só que tenho andado meio preocupado com algumas coisas e...
- Eu não quero saber o que anda passando nesse seu cérebro desinstruído. No mundo real, manda quem pode eobedece quem tem juízo! Se você não gosta da função que exerce aqui e não precisa estar aqui, há quem precise! E você pode voltar pra boca do lixo na qual veio e trabalhar com servente de pedreiro ou algo assim, que até é mais a sua cara mesmo. Então, mandou o e-mail?! Deixa euchecar...
Nesse momento, ele sentiu um calafrio rasgando sua espinha, tão forte que talvez nunca tivesse sentido um assim antes, nem quando ouvia seu tio chegando em casa durante a madrugada depois de beber litros de cachaça e abrindo a fivela do cinto para bater no pobre por ter cabulado aula de novo, com a desculpa de que o colégio não supria suas necessidades artísticas, nem sua sede de conhecimento.
- Não, calma Adri. Mandei sim, mas fica calma. Vou abrir aqui pra você ver.
Ela se direciona para trás da cadeira do jovem e olha atentamente para a tela do computador.
- Cadê? Me mostra...
Ele procura o tal e-mail com as mãos trêmulas e a respiração ofegante. Demora cerca de trinta segundos que parecem, em sua cabeça, trinta minutos. Sente em sua nuca bufadas de impaciência e isso faz com que seu desespero aumente.
Finalmente acha o tal e-mail.
- Aqui está, Adri. Tudo certo, tá vendo? Mandei faz mais ou menos uma hora, agora só estou aguardando a confirmação de recebimento e a resposta do responsável com o orçamento para a compra das mercadorias. Até achei estranho que ele tenha demorado tanto. Geralmente...
Ela deu um soco na mesa com tal força que fez com que a o barulho da batida assustasse até a moça da limpeza que trabalhava do lado de fora da sala cantarolando uma música irreconhecível, a não ser para ela mesma.
- Puta que o pariu, Vinícius! Você mandou o e-mail para o fornecedor errado! Você só pode ser mesmo um imbecil! Maldita hora que eu decidi contratar favelado pra cuidar de coisa séria. Agora a gente vai ter que esperar até amanhã, sendo que o estoque de comida já está acabando. Vai, sai daqui. Não quero ver sua cara suja nunca mais e nem me venha com direitos trabalhistas! O que você fez vai dar um prejuízo à casa no mínimo três vezes maior que a sua rescisão e dê-se por satisfeito por eu não manchar sua carteira com uma justa causa. Mas nem pense que vai haver carta de recomendação daqui. Você conseguiu, seu lixo! Conseguiu me tirar do sério e ser demitido! Tá feliz?
Ela travou seus olhos fixamente sobre os dele com uma obscuridade descomunal, como um cruel inverno no extremo norte do globo, onde e quando os dias quase não existem e a esperança parece só uma palavra vazia e sem sentido.
O pobre a olhava perplexo em estado quase catatônico. Não tinha reações e se inundara com aquela crueldade e escuridão vindas tanto das palavras quanto do olhar da mulher em pé a sua frente. Sentia-se constrangido ao extremo só de pensar no fato de que todos, dos garçons e garçonetes lá em cima no restaurante, clientes e até mesmo o segurança responsável por cuidar do estabelecimento, ouviram o brado daquele monstro de pele hidratada, boca miúda e corpo escultural contra o alto, porém de autoestima baixa – que neste momento fora reduzida a nada - e magro rapaz. Sentia também um enjoo e uma angústia tão abrangentes que pareciam se sobressair ao seu frágil corpo.
Ela continuava a olhá-lo vorazmente, como um predador atroz e sanguinário que não só almeja a presa, como a despreza.
- Tá esperando o quê?! Você entendeu ou eu preciso desenhar pra ficar explícito, seu semianalfabeto?! Leva essa carcaça desnutrida que você chama de corpo promuquifo que você chama de casa antes que eu decida deixar a sua carteira de trabalho da sua cor. E ouse, só ouse me denunciar por racismo que eu te meto um processo por calúnia e roubo até o resto da sua dignidade, se é que você tem alguma! Vai, passa, passa!
Não poderia ser pior.
Ele se levantou ainda em estado de choque e foi andando mecanicamente para a saída do restaurante. Quando fechou a porta, ela ainda gritava atrocidades que iam piorando gradativamente, a ponto de nem poderem ser repetidas neste relato. Sua vista se fechou e ele mal enxergava o que estava a sua frente. Acertou o caminho para a saída por osmose e, dado o constrangimento, saiu sem se despedir dos seus colegas de trabalho. Sabia que se ele pedisse, muitos se prontificariam a ajuda-lo num processo contra a empresa na qual agora era ex-funcionário. Mas sabia também que todos, sem exceção, estavam lá por necessidade e não queria que acabassem tendo o mesmo fim que ele.
O caminho até a residência onde morava, a pé, demorava cerca de uma hora e, por isso mesmo, ele dependia do transporte público para ir e vir. Mas dada a circunstância – seu pesar por tudo que viria a seguir depois da demissão e com o emocional dilacerado, ou pior, como a um corpo vítima de um estripador sedento – foi caminhando ainda sem ver o que se passava ao seu redor. Só caminhandorobotizadamente para a casa.
Chegando em casa, sentou-se no sofá e finalmente desabou. Chorou por quase uma hora sem parar e a mescla de sentimentos podres que circundavam seu interior lhe deu milhares de ideias autodestrutivas. Mas ainda havia esperança! Ainda havia pelo o que lutar. Seu sonho se tornaria palpável e só bastava ele sentar-se a cadeira de frente ao seu computador e fazer aquilo que nascera para fazer.
Pois bem. Apesar dos sentimentos ainda estarem borbulhando como lava de vulcão e a mescla de pensamentos fazer com que seu terminal de trem bala – sua massa cinzenta – quase entrar em colapso, ele tinha uma missão de prazo curto. Até a manhã do dia seguinte seu conto deveria estar pronto para ser encaminhado via internet à sede do concurso de contos que premiaria o vencedor com uma quantia pouco mais que simbólica em dinheiro, renome mínimo para iniciar a carreira e um contrato para fazer um livro compilado com seus melhores contos. Esse era o momento dele e nem mesmo as lembranças recentes mescladas ao passado difícil que se personificavam em vozes gritantes – mais até que a voz da ex-chefe – em sua cabeça podiam impedi-lo. Ele tinha que lutar até o último suspiro para fazer valer seu talento e provar a todos os que o desmereceram que ele era grande. Mostrar ao mundo cão que ele também sabia ladrar alto, mas sem precisar esboçar um só ruído.
Sentou-se, ligou a máquina, abriu o programa de textos e começou sua jornada até o fim do conto.
Não sabia bem porquê, mas talvez toda aquela raiva abraçada a tristeza profunda que sentia pareciam tê-lo dado inspiração. As letras saltavam de seus dedos e as palavras se formavam com uma velocidade e uma habilidade digna de livro dos recordes. O conto fluía por conta própria e ele sentia espectador de si mesmo. Quatro horas e meia passaram como se fossem minutos e agora só faltava o final.
- Agora só falta o final. Pensou em voz alta.
Pois, então... Faltava o final. E toda aquela segurança e fluidez da escrita, de repente, pararam.
Pensava em milhares de finais possíveis, todos trágicos, afinal a obra é o retrato do sentimento daquele que a cria, no momento que a cria.
Mas, ao mesmo tempo, todas soavam como clichês. Sempre que uma ideia nova lhe vinha, parecia que ele a havia plagiado de algum lugar, apesar de nunca se lembrar de onde. E, na verdade, nunca se importara e fazer uso de finais “óbvios”, pois cria piamente que mais importante que a ação final, era como ela era descrita. Se tinhacoerência com o todo e lirismo proporcional com a história. Se era bem descrita e entrava em conformidade com o que fora feito até então, não importava que já tinha sido usada por outro alguém, afinal, o ser humano não se copia por querer, é que se repete mesmo, goste ou não.
Mas neste caso era diferente. Tudo, para ele, estava em jogo e não podia se dar ao luxo de dar espaço para as críticas destrutivas dos jurados. Não bastava ser incrível, como de fato era, precisava ser o melhor entre muitos outros incríveis.
A pressão ao seu redor formava uma camada que quase dava pra se ver, e ia aumentando absurdamente a cada segundo, que agora parecia simplesmente não passar.
O dia raiara há algum tempo. Era hora de enviar o conto e ele não podia mais esperar. Portanto, tomou uma decisão.
Bateu os dedos no teclado por mais alguns segundos, escrevendo um último parágrafo. Levantou-se, foi até sua gaveta de remédios. Ingeriu três cápsulas doantidepressivo tarja preta que lhe fora receitado quando começara a sofrer crises de síndrome do pânico, meses atrás. Virou um copo de vodka barata que encontrou no congelador. Esperou alguns minutos, foi até a sacada do apartamento onde morava, no sexto andar de um prédio mal acabado e se deixou cair para o fim, ou para a eternidade.
Horas depois a polícia investigativa entrou em seu apartamento para angariar provas acerca do ocorrido. Um dos investigadores encontrou maconha no criado mudo, ao lado da cama. Foi averiguado que ele não fizera uso da erva na noite do ocorrido, mas, caso nada fosse constatado, pelo menos eles já tinham uma desculpa satisfatória para dar. “Uso abusivo de drogas ilícitas” é socialmente aceito e não pede muitas perguntas. Não que eles se preocupassem, afinal, também já haviam constatado logo de cara que se tratava de um ninguém, então não haveria mesmo quem fizesse lá muitas perguntas, fosse o que fosse.
O computador estava na tela de descanso. O único policial que parecia estar realmente intrigado com o caso mexeu no mouse e viu o documento aberto. Leu o que havia no documento com atenção, e percebeu que se tratava de um conto. Depois de cinco páginas de intensa descrição dramática, chegou ao final e anotou o último parágrafoque encerrava o escrito numa caderneta que carregava no bolso do casaco.
Juntou-se aos colegas que comentavam sobre o que se passou e começou a contar a história que lera de autoria do suicida sobre um anjo negro nomeado Esperança em latimcontra uma legião de anjos brancos maledicentes. Por fim, sobram só ele, a Esperança, e o arqui-inimigo, o Medo.
Nossa, esse menino tinha muito talento! – Disse abismado um dos colegas do policial - Mas como acaba a história?
- Acaba sem acabar – Respondeu o policial.
- Como assim, tenente?
O policial saca sua caderneta do bolso do casaco, olha para seu colega questionador e abaixa a cabeça para a frase que anotara. Respira fundo e lê em voz alta:
- “E assim, os anjos digladiam-se eternamente, pois ambos estão acima da vida e da morte. Se não creem em minhas palavras, caros jurados, analisem novamente. Eu morri, mas meu Medo e minha Esperança não. Ambos continuam digladiando-se agora na cabeça dos senhores. Portanto, cabe aos senhores decidirem quem vence no final e, tenho certeza, que para cada um, o vencedor será diferente.

Fim.

(Arthur Valente)

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